As Inspirações da Morte – por Nikelen Witter
Originalmente publicado na Revista Fantástica (coluna Indo à Fonte)
A invasão já vem de longa data. Eles andam por aí, caminhando como se fossem eu ou você. Mas não são.
Eles preferem as horas escuras da noite. Seus olhos (quando os têm) são minas de perversidades. Seus hálitos fétidos são a prova de suas naturezas decompostas. O toque gelado de suas mãos é uma sentença de abismo.
O fato é que: os mortos “sem descanso” descansam bem menos quando estamos falando de literatura fantástica. Vampiros, zumbis, múmias, criaturas feitas de restos humanos, infectados… A imaginação dos escritores não tem limites. Criar e recriar em cima de todos estes seres é um dos passatempos favoritos dos que pensam realidades alternativas e fantásticas. Mas, é claro, a Morte como fonte de inspiração não é nenhuma novidade. Afinal, a consciência dela está na raiz de nosso próprio sentido de humanidade, a qual vai encontrar uma de suas primeiras expressões justamente nos rituais envolvendo os mortos de sua própria espécie.
Os rituais fúnebres humanos são amplamente diversos no planeta e quase sempre complexos, seja na forma seja na simbologia que carregam. Por outro lado, se nossa percepção aponta que toda a vida caminha inexoravelmente para a morte, não faltam conjecturas sobre o que haveria depois dela. Muitos povos acreditam na Morte mais como um ritual de passagem, análogo ao nascimento, do que como um fim derradeiro. Daí as inúmeras simulações de uma segunda vida, ou, ainda, as teorias e proposições sobre os que permaneceriam NESTA vida – mesmo após ter se despedido da existência.
As religiões, portanto, nascem desta angústia comum a todos os humanos. Elas se organizam em torno das explicações possíveis (ou reveladas, segundo algumas). Em seu lado de pesadelo (aquele espaço em que mesmo a mais forte das crenças povoa de histórias mal explicadas, mistérios e com o INEXPLICÁVEL), porém, dão asas aos medos que os vivos alimentam sobre aqueles que já deveriam ter partido. Este sentimento é tão forte que, mesmo nos mais antigos enterramentos humanos, os investigadores se deparam – não apenas com uma seleção de objetos que os defuntos poderiam necessitar na pós-morte –, como também com amarrações em posição fetal. As amarrações, segundos os historiadores e antropólogos, podiam tanto servir para manter essa posição de semente e garantir o renascimento, como para impedir os mortos de levantarem (e virem puxar os pés dos vivos).
A Morte é fim e, ao mesmo tempo, o começo para a maioria das crenças. Em algumas é, inclusive, o fim necessário para que o próprio começo exista. No entanto, por mais que haja esforço para se lidar com a Derradeira, e de respeitar os que a encontraram, o medo persiste e é universal. Cada povo do planeta possui não somente seu conjunto de rituais mortuários, como também suas lendas, mitos e histórias envolvendo a morte, a pós-morte e os mortos. E, não raro, vemos a MORTE mesclando o macabro e os festejos. Muitos povos não apenas celebram a vida, mas também a morte e os dias dos mortos. Estas festas envolvem não somente a representações da Morte e dos Mortos e não-vivos de toda espécie, como também são épocas de marcantes em muitas sociedades. Longos preparativos, muita comida e bebida idem, comidas especiais, danças, atividades envolvendo as crianças.
Se você pensou apenas no Halloween e na forma como alguns grupos vivem o Católico Dia de Finados, então, está na hora ver um pouco mais de Morte por aí. Fiz uma seleção de livros e links para você pensar bastante na Morte. Sem depressão, claro, afinal, a Morte é angustia, mas, em muitos lugares também é (nas palavras do historiador J.J. Reis) “uma festa”. Para fugir um pouco das sugestões mais convencionais de livros e temas de pesquisa, segue uma lista pequena (e muito longe de ser exaustiva) abaixo. Mas não se impressionem, a lista só é pequena porque muito vai se falar em Morte por aqui (hum, aqui cabe uma risada maléfica).
O Livro dos Mortos do Antigo Egito. Datado do segundo, talvez terceiro milênio a.C, esta obra reúne textos funerários do Antigo Egito, seus rituais e crenças sobre a vida pós-morte. Contém hinos, rituais e fórmulas mágicas que pretendem garantir a ressurreição das múmias reais. O livro é facilmente encontrado, seja impresso ou, até, digitalizado para download. Também serviu de base para documentários como o abaixo (as outras partes podem ser acessadas na página do documentário no Youtube).
http://www.youtube.com/watch?v=jqTeDiFc4wY
Dia dos Mortos. A encantadora tradição mexicana – que muitas vezes se confunde com o Halloween na América do Norte – está bem distante, na origem, da festa de origem europeia. A celebração do Dia dos Mortos remonta às tribos pré-colombianas e tinha formas variadas. Hoje a tradição tenta resgatar os elementos mais antigos, mas as transformações, adendos e sincretismos já fazem parte de sua história. Cheia de simbolismos, mas guardando um ar de festa, esta celebração da Morte traz de volta o imaginário pré-colombiano a cerca do mundo pós-vida, com seus três locais de passagem, reencarnações, mortes desejáveis e detestáveis. Em 2003, o Dia dos Mortos foi declarado pela UNESCO, Obra Mestra do Patrimônio Oral e Intangível da Humanidade. Assista ao maravilhoso Festa no Céu.
Kuarup. O belo ritual em honra dos mortos ilustres realizado pelos indígenas da região do Xingu, no Brasil, tem uma estrutura mitológica pouco conhecida dos brasileiros, mas é, provavelmente, uma das mais antigas festas dos mortos ainda realizadas no território do país. Vale à pena pesquisar, ler e conhecer os ótimos documentários feitos sobre o assunto. O Karup foi inspiração para o famoso livro homônimo de Antônio Callado e sua adaptação para o cinema, feita em 1989, pelo cineasta Rui Guerra.
RODRIGUES, José Carlos. Tabu da Morte. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2011. Este livro faz uma antropologia da morte como forma de compreender a própria vida. “Das sociedades chamadas primitivas ao capitalismo contemporâneo, o autor conduz a reflexão a expandir nossa imaginação por meio do inventário e da cuidadosa análise das diferentes formas de pensamento e dos distintos modos de ação que permitem aos coletivos humanos inverter o rumo aparentemente inexorável das coisas e da morte, fazer a vida”. (citado do texto da editora)
REIS, João José. A Morte é uma Festa. São Paulo. Cia das Letras, 1991. Obra já clássica da historiografia brasileira, vencedora do Prêmio Jabuti de 1992. Entender os rituais e os costumes que envolviam a Morte e os mortos na Bahia do século XIX (e mesmo antes) é a proposta deste estudo. Uma das mais interessantes e sedutoras obras de História do Brasil.