Contos tradicionais e os causos – por Nikelen Witter
Originalmente publicado na Revista Fantástica (coluna Indo à Fonte)
A primeira coisa a dizer é que o conto tradicional não é o mesmo que mitologia. A mitologia se compõe de um conjunto de histórias em que são narrados os feitos de deuses e heróis e que, geralmente, relatam a origem, o nascimento ou a criação de algum seu ou coisa. Certos povos, inclusive, dividem suas narrativas em história verdadeiras, isto é, as mitológicas em que se conta sobre algo que “realmente” aconteceu (neste ou noutro plano), e as histórias falsas cujo papel cultural varia do entretenimento à passagem de algum conhecimento ou sabedoria. Os contos tradicionais se encontram na segunda categoria e são comuns à praticamente todas as culturas que se tem notícia.
Dentre nós, os que primeiro vem à mente quando falamos sobre contos tradicionais são os chamados de fadas, ou da mamãe ganso, ou da carochinha, conforme se celebrizaram nas culturas herdeiras das tradições europeias. Mas é errôneo imaginar que sejam apenas estes os representantes deste riquíssimo material.
Os contos tradicionais podem conter elementos de caráter fantástico ou maravilhoso, mas isso não chega a ser uma regra. Há quem os nomeie pelo termo popular, querendo com isso indicar que estes teriam raízes distintas do material produzido e aceito pela elite cultural das sociedades. Contudo, não é tão simples assim entrarmos nessa classificação. Alguns desses contos podem ser narrativas popularizadas de textos originados na elite e que com o tempo foram sendo incorporados pelas formas orais do cancioneiro popular. Da mesma forma, muitas narrativas colhidas junto à população não letrada forma, com o tempo sofisticando-se até ganharem as páginas escritas e passarem a integrar narrativas tidas como elitizadas. Tal mistura é mais comum do que se pensa.
Alguns autores colocam esses contos junto a outras produções ditas populares (leia-se criadas no âmago do povo sem data de origem, transmitidas de forma oral ao longo do tempo) como adivinhas, provérbios, canções, lengalengas, jogos de palavras, trava-línguas, etc. A principal característica deste material é não ter autor, ou melhor, seu autor é coletivo. Contudo, eu mesma tenho certo cuidado em usar para definir este autor o termo “atemporal”. Ora, isso significaria dizer que o autor está “fora do tempo”, mais ainda, poderia sugerir que este material não sofre modificações ao longo do tempo. Sofre sim. Cada geração irá recontá-lo à sua maneira e cada contador irá enfatizar aquilo que julga ser mais importante. Tais modificações, porém, são mais sentidas nas narrativas, as cantigas e afins tem, por conta das formas rimadas (mais facilmente retidas pela memória), uma vida mais longeva. Isso é fácil de perceber quando você se lembra de uma cantiga da infância e se dá conta de que não sabe o sentido de determinadas palavras como, por exemplo, o que é um “roupão de se bordado com filó”. O que você acredita ser roupão, provavelmente, não é o roupão que a cantiga se refere, pois este não seria bordado e assim por diante. As modificações nas narrativas, por muito tempo, nos foram quase invisíveis, hoje, porém, com o resgate de formas anteriores podemos perceber o quando andaram narrativas que tínhamos como únicas. O caso dos contos de fadas é o mais notório, hoje temos acesso a dezenas de versões de Cinderela, Bela Adormecida, Pequeno Polegar, etc.
Entre os contos tradicionais encontramos também os contos que envolvem animais falantes, as fábulas, os apólogos, os contos de adivinhação e até alguns de origem histórica. As narrativas com animais falantes são tremendamente interessantes, pois apontam, inclusive, para um período da história humana em que a convivência e a observação dos animais gerava histórias e modelos de comportamento. Se você acha que apenas o grego Esopo escreveu sobre isso, dê uma busca em contos tradicionais africanos, latinos e norte-americanos, chineses, indianos, vai encontrar coisas bem interessantes.
Os contos populares, porém, apresentam-nos interesses que vão além do prazer de sua narrativa. Eles são tremendamente ricos na apresentação de conflitos e das soluções humanas para eles. Alguns, porém, não trazem solução, deixam seu ouvinte atônito simplesmente ao contar uma história que impressiona. Como o conto a seguir:
Um Velho tinha um filho muito trabalhador. Não podendo ganhar a vida como desejava em sua terra, despediu-se do pai e seguiu viagem para longe a fim de trabalhar. A princípio mandava notícias e dinheiro, mas depois deixou de escrever e o velho o julgava morto. Anos depois, numa tarde, chegou à casa do velho um homem e pediu abrigo por uma noite. Durante a ceia conversou pouco e deitou-se logo para dormir. O velho notando que o desconhecido trazia muito dinheiro, resolveu matá-lo. Relutou muito, mas acabou cedendo à ambição e tentação e assassinou o hóspede, enterrando-o no quintal do sítio. Voltou para a sala e abriu a mala do morto. Encontrou ali as provas de que se tratava do próprio filho, agora rico, e que vinha fazer-lhe uma surpresa. Cheio de horror, o pai matador foi entregar-se à justiça e morreu na prisão, carregado de remorsos. (Este é um conto da Tradição popular do Minho em Portugal. Esta versão, ligeiramente modificada, é comum no Nordeste do Brasil desde o século XIX. Fonte: http://sitededicas.ne10.uol.com.br/ct06.htm)
Contos assim são apenas aparentemente simples. Sua estrutura abre margem para que o contador ou narrador crie e recrie sobre o plot original. Daí o fascínio exercido por este tipo de texto/narrativa na imaginação dos mais diferentes autores de ficção fantástica.
Outro tipo de conto tradicional são os chamados “causos”. A denominação é bem brasileira. O causo é uma história verdadeira ou inventada que pode ser engraçada ou assombrosa. Ocorreu no passado, próximo ou distante, pode ter seus protagonistas adequados à situação em que é contada. Ora foi com um amigo ou conhecido, ou parente distante, por vezes, até o narrador pode identificar-se com o protagonista. O causo pode, por vezes, ser a história tradicional da família que, num dia, você descobre, numa mesa de bar, que se trata de algo de domínio coletivo. Outras vezes o causo pode ser assimilado à lenda, quando é enunciado da forma mais tradicional: “dizem que”. Diversos autores já compilaram e reescreveram causos.
O causo, muitas vezes, apresenta até mesmo narrativas mais complexas que os contos tradicionais, perde, porém, no simbolismo. Isso porque, geralmente, os causos têm origens mais modernas o que faz com que o agregamento de símbolos à narrativa seja mais incipiente. Não existe qualquer estudo sobre isso, mas nada impede de um causo se tornar um conto tradicional. Para alguns eles são a mesma coisa. Outros, como eu faço aqui, os diferenciam.
Como fonte para a literatura (fantástica ou não), no entanto, os causos são tão interessantes e ricos quanto os contos tradicionais. Ouvir atentamente as histórias contadas por seus pais e avós é o primeiro passo para acessá-las.
Até a próxima!