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A questão da Odisseia – por Nikelen Witter

Originalmente publicado na Revista Fantástica (coluna Indo à Fonte).

É difícil falar da Ilíada sem se referir a Odisseia e vice-versa. Seja pelo contexto, pela época ou até pelo compartilhado nome do autor. De fato, após comentar aqui a Ilíada, ficou implícito que logo eu teria de falar da Odisseia. Porém, acreditem, apesar do contexto, da época, dos personagens e até mesmo de serem atribuídos ao mesmo autor, a Ilíada e a Odisseia são textos fundamentalmente diferentes. A Ilíada é uma epopeia, já a Odisseia é considerada pelos especialistas um romance. Como assim?

210px-Homeros_Caetani_Louvre_Ma440_n2Bem, primeiro é preciso que se diga que ambos os textos são fruto da compilação de material anterior. Lendas, tradições, sagas, mitos das mais variadas origens que foram, lentamente, sendo costurados e amarrados uns aos outros formando um conjunto complexo e nem sempre completamente coeso. Alguns autores, por exemplo, acreditam inclusive que a compilação final foi mais feliz na Ilíada que na Odisseia e aí se volta a cair nas insolúveis controvérsias da questão homérica (de Homero ter ou não existido) que não são nosso objetivo aqui. Contudo, retornemos às diferenças entre os dois poemas e o porquê de pertencerem a gêneros literários distintos.

… na Ilíada vamos encontrar tradições militares das tribos do mundo helênico, em suas variadas etnias, com certa base histórica, ainda que transfigurada pelo mito, ao passo que a Odisseia é um tema universal, que ocorre na literatura de muitos povos e cuja ação se passa em toda parte e em parte alguma. (NUNES, s/d)

O tema universal da Odisseia – do homem que parte para guerra deixando bens e esposa se arrisca na guerra e no retorno, que é demorado, precisa lutar novamente para reconquistar seu lugar – já foi demonstrado por estudiosos e usado em inúmeros livros posteriores. Sua universalidade vem do fato de que ele poderia ter ocorrido na Grécia Antiga, nas Cruzadas, na época dos bandeirantes, das navegações, na 1ª ou na 2ª Guerra, ou num dia chuvoso em Dublin ou em São Paulo.

No caso da Odisseia clássica – que empresta o nome de seu herói, Odisseus (mas também Ulisses no latim) – o guerreiro é um rei que após 10 anos lutando em Tróia quer voltar para seu lar. Porém, o Odisseus original não é somente um homem inteligente, ele tem toda a arrogância comum a quem se sabe muito inteligente (no caso dele, a ponto de ser amado pelos deuses). Antes de partir, Odisseus se gaba de seus feitos, de sua capacidade, de ter sido ele, após 10 anos de conflito, a vencer a guerra contra Tróia com o ardil do cavalo de madeira. O problema é que Poseidon também se julgava responsável pela vitória dos gregos. A moral da história é que não se deve entrar numa batalha de egos com um deus e Poseidon condena Odisseus a jamais pisar em Ítaca (sua ilha e seu reino) novamente.

A Odisseia é a narrativa dos 10 anos que Odisseus leva para provar que um deus não determinava o seu destino. Em termos literários, pode-se dizer que as aventuras de Odisseus eram variadas e separadas em suas origens, sendo depois, costuradas nos 10 anos de seu retorno e num motivo. Ele seduz e é seduzido; luta contra gigantes, feiticeiras, sereias, duas formidáveis criaturas transfiguradas em perigos naturais e sobrenaturais (Cila e Caribdes); precisa reconquistar seu reino e vive anos de aventuras sem fim e com direito a todas as reviravoltas literárias que um herói poderia desejar.

odisseiaComo leitora e historiadora destaco dois momentos que considero importantes. O primeiro é a passagem pelas sereias. Ali, fica claro que, entre os gregos, havia homens de duas substâncias. Os inferiores, incapazes de se conter diante das maravilhas, representados pelos marujos da nau de Odisseus a quem ele sela os ouvidos com cera. E os superiores, como o próprio herói, capaz de ouvir a maravilha do canto das sereias, atingir a transcendência, mas igualmente capaz de se dominar, conter a si mesmo, o que é representado por se amarrar ao mastro principal de seu navio.

O segundo momento é a própria vitória de Odisseus, seu retorno à Ítaca. Entenda, trata-se de um humano que, em vontade, supera um deus. Todo o material cultural anterior aponta para a impossibilidade disso. A mitologia se prende ao tempo cíclico em que o destino já está traçado e é inexorável. Ora, a vitória de Odisseus inaugura outro tempo, o da História, do tempo linear, um tempo humano, insubstituível, impossível de ser repetido.

A estrutura, a diversidade de leituras possível e, em especial, a aventura fazem da Odisseia um texto obrigatório. Acredite, Joseph Campbell (A jornada do herói) é muito bom em transmitir a estrutura fundamental de uma história de aventuras, mas nada se compara a conhecer – em primeira mão – o mais inteligente e ardiloso dos heróis gregos. Exato: sou fã descarada daquele que Athena tinha pelo seu mais amado entre os mortais.

Até a próxima!

Para ler:
– HOMERO. Odisseia. Trad. Direta do grego, introdução e notas por Jaime Bruna (USP). São Paulo: Editora Cultrix, s/d.
– NUNES, Carlos Alberto. A questão Homérica, in HOMERO. Ilíada. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
– SISSA, Giulia e DETIENNE, Marcel. Os Deuses Gregos. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.