Criando um novo mundo – por Nikelen Witter
Originalmente publicado na Revista Fantástica (coluna Indo à Fonte)
Criar um mundo novo, mesmo que fictício, é ser um pouco deus. O problema é que não se cria esse mundo do nada. O criamos a partir de nós mesmos, de nossos conhecimentos, conceitos e preconceitos, de nosso universo linguístico e visual. Logo, independentemente do quão diferente seja o mundo criado, ele vai se comunicar com o nosso. E, de fato, ele precisa disso. Se não se comunicar, nosso leitor não saberá o que lê, não compreenderá o que estamos mostrando. Se o escritor escreve floresta, imediatamente o leitor irá acessar a ideia que tem do que seja floresta, ele não há de imaginar um deserto.
O que quero dizer é que não é possível criar sem pontes linguísticas e conceituais com o leitor. Os autores que fazem isso acabam por se tornarem enfadonhos – ao menos para o meu eu leitora.
Creio que a chamada “alta fantasia” tem mais problemas nessa questão, pelo fato de que todos os personagens estão imersos num mundo de lógica alternativa a do nosso mundo. Nesse caso, o cuidado na criação tem de ser ainda maior. Isso porque a verossimilhança não pode ser associada ao didatismo explicativo; os personagens não podem se maravilhar com o que, para eles é comum. Por conta disso, o excesso de descrições pode atrapalhar o processo de engajamento do leitor. Por outro lado, a narrativa não pode soar como uma “tradução” deste mundo para uma linguagem que faça sentido para nós (pois não é o nosso mundo e, em princípio, não estamos nele).
Sendo assim, as regras desse universo devem ser muito bem estabelecidas e nunca podem ser quebradas. A Ficção Científica sofre de um mal semelhante. Por vezes, nomes de objetos e ideias ficarão para sempre imersos na mente do escritor, sem que o leitor alcance. Isso porque a tradução levaria ao didatismo e ficaria deslocada na narrativa.
Por outro lado, é oferecer o futuro ao leitor de outro tempo. Imagine que você é um leitor do século XVIII e se depara com o seguinte texto: “Melina pegou o I-fone e mandou um torpedo para Diana, dizendo que se atrasaria por conta da reunião. Sendo a chefe, ela não teria como se ausentar.” Deu para entender? O século XVIII não sabe o que é sequer um telefone, nem imaginaria uma mulher numa posição de comando e, diabos os carreguem, o que é um torpedo e como assim se manda isso a alguém com quem se tem relação?
Se o escritor fosse traduzir nos termos da época, perder-se-ia muito da literatura, o texto acabaria fraco em seu conjunto, perderia sua feição de janela para outro universo, seu papel de descrever, sem explicar. É bem mais fácil quando um personagem de nosso tempo e espaço viaja a mundos paralelos. O leitor ganha assim um tradutor, alguém disposto a se maravilhar e colocar em termos conhecidos o desconhecido.
Para o escritor, porém, essa criação não vem toda ao mesmo tempo. Imagino que após os seis dias de praxe criando as regras de nosso novo mundo, passamos o longo sétimo dia escrevendo e ajustando, pois, algumas coisas são pensadas quando nos deparamos diante delas e é preciso resolvê-las. Por vezes, isso pode alterar regras fundamentais e precisamos voltar ao começo para reorganizar tudo.
Em livros em série, isso é ainda pior. Afinal, não se pode alterar uma regra depois que algum livro já foi publicado. Qualquer alteração, mesmo que mínima, pode causar problemas. Darei o exemplo de uma série bem conhecida: Harry Potter. Quem leu os livros, ou mesmo só assistiu aos filmes, sabe que a poção polissuco só dura uma hora. Para se manter, a poção precisa ser bebida constantemente. As regras aparecem nos livros 2 (A Câmara Secreta) e 4 (O Cálice de Fogo). Quem leu o livro 7 (As Relíquias da Morte) e não ficou se perguntando se a regra havia sido alterada? Isso porque ao longo do livro 7 a tal poção parece ter seus efeitos continuados por bem mais de 1h. Quem perdoa o escritor que torce suas próprias regras para elas caberem em sua ação?
Brincar de deus não é simples e dá trabalho.