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Comer ou não comer: eis a questão! – por Nikelen Witter

Originalmente publicado na Revista Fantástica (coluna Indo à Fonte)

               A construção de mundos ficcionais não raro coloca os escritores diante da possibilidade de descrever ou não aquilo que seus personagens comem. Afinal, a tradição realista – mesmo que no caso da literatura de gênero – aponta para elaboração da identificação entre personagens e as ações cotidianas de seus leitores. Ora, trata-se de um fato inescapável: todos comem. Sejam os elfos de Valfenda ou os hobbits do Condado. Sejam os bruxos de Hogwarts ou os netos da Dona Benta.

               As refeições nos livros são espaços para conversas, para um momento de descanso das outras ações, para reflexão e são, também, uma necessidade. Sem elas, o leitor logo começará a se perguntar, afinal, como este personagem fica vivo? É claro que vai de cada autor detalhar mais ou menos a culinária, a gastronomia ou a comensalidade em seu mundo ficcional. Em algumas passagens, as descrições podem, até mesmo, ter um papel central. Os autores que escrevem para crianças e jovens há muito descobriram que a descrição, mesmo que rápida, de alimentos interessantes pode estimular grandemente a imaginação de seus leitores.

“O caso de JK Rowling também é interessante, pois a alimentação de Harry Potter está em primeiro plano.”

               Este é o caso dos escritores citados acima. Monteiro Lobato, por exemplo, não criou somente uma boneca falante impertinente, o tia nastaciasabugo de milho mais inteligente do mundo e o sítio em que toda a criança gostaria de crescer, mas também a maior cozinheira brasileira da literatura. Tia Nastácia sofria todo o tipo de incômodo com o Saci, mas era capaz de domá-lo com um prato de seus famosos bolinhos de chuva, sempre roubados pelas crianças antes de o prato de frituras ficar cheio. O caso de JK Rowling também é interessante, pois a alimentação de Harry Potter está em primeiro plano. Da fome passada na casa dos tios à fartura da escola, acompanhamos o menino pouco crescido e desnutrido, ao rapaz forte que a comida da escola produz. Interessante notar que dos primeiros livros para os últimos – talvez por um toque de seus editores, talvez pela sensibilidade materna da autora – as comidas vão perdendo em gordura. Do bacon constantemente citado no início, encontramos mais vezes torradas, geleia e mingau de aveia.

               Quando as descrições têm por base a época atual e estão intimamente ligadas às nossas formas culturais de alimentação, bem como aos produtos mais conhecidos, não se percebe grandes problemas nas descrições alimentares. No entanto, muitos autores se aventuram pela história ou por outras culturas, ou constroem épocas e culturas muito diferente. Aí, a apresentação da alimentação pode denunciar uma série de coisas. Um descuido com uma parte fundamental da vida humana, com a pesquisa ou um etnocentrismo atávico do autor, que não se preocupou em ir além do que ele considera se alimentar.
salao comunal               Quando falamos de alimentação, o etnocentrismo é quase uma regra. É muito comum desfazermos dos outros pelo que comem ou deixam de comer. Já vi brasileiros criticando a cultura indiana por considerar a vaca sagrada e, portanto, não comestível, e a alguns povos orientais por consumirem cães como iguaria. Nossos nojos alimentares rendem programas de TV e o sensacionalismo do exótico para tudo o que não é a nossa cultura. Entretanto, ao se trabalhar com a construção de mundos ficcionais é importante descentralizar nossas percepções alimentares. Neste sentido, não basta apenas pensar que vampiros ingerem sangue e zumbis comem cérebros, é preciso lembrar que cavaleiros podiam comer cavalos e também lesmas, que indígenas comiam (e comem) bicho-pau e que os esquimós acreditam que lamber a carne antes de entrega-la a um convidado é uma suprema forma de cortesia. Explorar essas idiossincrasias alimentares pode ser bem saudável quando falamos de ficção.

               Por conta disso, aqui vão alguns livros para leitura e pesquisa para os que resolverem se aprofundar no assunto. Desde já adianto: são leituras deliciosas!

– CARNEIRO, Henrique. Comida e sociedade: uma história da alimentação. Rio de Janeiro: Campus, 2003.
– CASCUDO, Luis da Câmara. História da alimentação no Brasil. São Paulo: Global, 2004.
– FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (dir.). História da alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998.
– STANDAGE, Tom.  A História do Mundo em seis copos. Rijo de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.