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A Ilíada e o tecido da guerra – por Nikelen Witter

Originalmente publicado na Revista Fantástica (coluna Indo à Fonte).

A Ilíada, obra clássica da cultura grega antiga, atualmente é mais citada do que lida. De fato, isto é realmente uma pena, pois inúmeras são as perdas que decorrem do fato de nosso contato com essa história ser mais por ouvir dizer, assistir e contar do que por ler. Então, é sobre isto que vamos conversar hoje: sobre o porquê de se ler a Ilíada. Afinal, vale à pena se debruçar sobre os versos de um poema de quase 3000 anos? Não é melhor ler o resumo? Sim, para a primeira questão, e não para a segunda. Porém, se o seu contra-argumento for simplesmente dizer que poemas épicos são chatos, então, talvez, você deva parar de ler agora ou, se estiver certo de que não vou te convencer, ler até o fim.
Não vou entrar aqui nos temas que, geralmente, aparecem nos estudos literários e filológicos da Ilíada, até porque tais estudos podem compor bibliotecas inteiras e são polêmicas ainda longe de encontrarem sua solução. A primeira delas tem a ver com o próprio autor, mais precisamente com a existência dele. As dúvidas sobre a vida de Homero – o poeta cego, a quem a Ilíada foi atribuída – remontam à própria antiguidade clássica e não arrefeceram desde então. Por estes motivos, vou deixar este debate de lado para me dedicar à obra como fonte de inspiração, pesquisa e prazer literário. Apenas quero comentar que, a cegueira do poeta não é um mero acaso. De fato, ela própria é alegórica de sua condição, é a prova de sua capacidade de contato com outros mundos, sua capacidade de trafegar entre realidades. Seus olhos podiam estar fechados para o mundo ordinário, mas não para o mundo transcendente.
GNNGF     Também deixarei de fora os inúmeros estudos que existem sobre a unicidade do poema e as polêmicas filológicas que envolvem sua construção, até porque não é a minha praia. Os estudos históricos com base na obra, embora incrivelmente interessantes, deixariam esta postagem muito longa. Então, vou me ater à tentativa de convencer leitores, que ainda não se encontraram com este texto, de vê-lo como um desafio e um convite, como uma misteriosa floresta feita de palavras. O prêmio por vencê-la? Ahh, acredite, possuir a Ilíada em si, não tem preço.
Um dos primeiros enganos de quem não conhece a obra é achar que ela trata de toda a guerra de Tróia (Ilion em grego, daí o nome Ilíada – cujo significado aproximaria da ideia de viagem, jornada, epopeia no espaço de Ilion). Na verdade, as dimensões do poema são bem menores. Abarca o último ano da guerra, mesmo que haja explicações do que ocorreu antes (e, em algumas vezes, adianta-se o que virá depois), e tem um tema definido: as razões e as consequências da “cólera de Aquiles”. O texto nem mesmo chega até a morte do herói grego, findando antes, na trágica destruição do herói troiano, Heitor.

E toda aquela história sobre Helena e o Cavalo de Tróia?
Bem, nenhuma destas aparece no poema. As narrativas sobre a vida de Helena encontram-se dispersas em mitos diversos, alguns referidos, outros não, no poema. A mais bela das mulheres é raptada (um rapto consentido) pelo príncipe mais jovem de Tróia, Páris. O jovem apaixonado foi impetuoso o suficiente para desconsiderar os fatos de ela ser casada; de seu marido, Menelau, ser irmão de Agamenôn, que exercia grande liderança entre os reis e senhores da península grega; e de que havia um acordo prévio entre os reis gregos de se vingarem das afrontas ao marido de Helena. Este acordo foi urdido por Ulisses (o Odisseus).
É claro que, ao mais inteligente dos heróis bastou colocar os olhos em Helena para saber que ela era incômodo certo, e que o homem que casasse com ela teria muitos problemas.  A fim de impedir que a Grécia mergulhasse no caos de uma guerra quando a moça por fim fosse entregue ao seu eleito, Ulisses aconselhou o pai (padrasto, já que ela é tida como filha de Zeus) da moça que fizesse com que os pretendentes jurassem solidariedade ao marido. Esta aliança prévia é que determina o começo da guerra que, de fato, nem todos queriam. O próprio Ulisses tentou se furtar ao juramento e escapar dela, fingindo-se de lavrador. Aquiles, o outro grande herói grego, cujo poder de combate era almejado por todos os generais, também tentou escapar e foi mais longe que Ulisses: vestiu-se de mulher e se mesclou em um “harém”. Foi denunciado pelo próprio Ulisses, que o reconheceu pelo gosto e manejos por armas. Já, o cavalo de Tróia aparece em cantos tradicionais que não constam nem na Ilíada nem na Odisséia, embora sejam referidos nesta última.
A falta destes elementos, no entanto, em nada depõe contra o poema em si. O que resta é grandioso e pleno de nuanças a serem interpretadas. Primeiro, é preciso dizer que não faltam batalhas e estas são primorosas. A narrativa, mesmo com os adendos elogiosos comuns nesse tipo de texto, é poderosa e sangrenta. É interessante observar os deuses tomando partido, mesmo tendo sido proibidos por Zeus (Hera, sua esposa, dopa-o com uma poção, para garantir que os deuses mais partidários não percam nenhuma batalha). Aliás, essa interação entre homens e deuses, seres mortais e divinos é um dos elementos mais interessantes da epopéia. Alguns grandes estudos sobre a natureza dos deuses e a forma como os gregos os viam usam por base acontecimentos ocorridos em meio ao calor da guerra.
O segundo ponto diz respeito às questões que tecem e permeiam essa guerra. Veja bem, a hqdefaultbatalha em si é tramada e costurada a partir de sentimentos humanos, demasiadamente humanos (sentimentos que, inclusive, arrebatam os deuses). Afinal, foi o desejo de Páris e Helena que deu início ao confronto e a honra ultrajada de Menelau que o solidificou. Mas a guerra de Tróia e a Ilíada estão muito longe de se resumirem a isso. Cada personagem exerce em plenitude seu direito à paixão (com toda a força que a palavra carrega) e seus dramas vão compondo o tecido articulado e colorido deste conflito maior. A Ilíada põe seu foco mais veemente na paixão (melhor dizendo, nas paixões) de Aquiles.
O tempestuoso herói grego não é guiado pela racionalidade pragmática e finalista (afinal, ele é um homem anterior a própria existência destas questões). Aquiles quer o que deseja e não se dobra a autoridades maiores que sua força de combate ou sua origem (ele é filho da deusa Tétis e não se esquiva a isso). Como personagem, talvez, seja justamente no fato de representar um homem de seu tempo que as adaptações e releituras da Ilíada acabem, não raro, reduzindo sua complexidade. Transformar Aquiles num herói moderno é retirar parte de seu poder.
No início da Ilíada, Aquiles está satisfeito com seu butim, a jovem Briseida. Agamenon, por sua vez, tomou para si Criseida, filha de Crisis, sacerdote de Apolo. O pai desta moça clama ao deus pela filha e Apolo atira suas flechas sobre o exército grego cobrindo-o com uma praga epidêmica. Mesmo que Agamenon recuse inicialmente devolver Criseida, ele acaba, sob forte pressão de seus generais, obrigado a isso. Furioso, o grande rei toma então a presa de Aquiles, Briseida, e isso acaba precipitando as tragédias deste último ano. Aquiles se retira da guerra, mas seus homens se opõem. O resultado é que ele acaba entregando, após muita insistência, suas armas para Pátroclo e este acaba sendo morto em batalha por Heitor, o que desencadeia o segundo acesso de fúria de Aquiles.
iliada    É neste ponto que, em geral, as adaptações que pretendem fornecer uma Ilíada a um gosto mais “moderno”, falseiam o texto. Pátroclo é, geralmente, descrito como amigo de Aquiles. Porém, como já se disse, em outras épocas, “amigo” é um termo bem amplo. Seria melhor dizer que Pátroclo era o amor de Aquiles, o que não o impedia de possuir ou até mesmo amar mulheres (sua paixão literalmente fulminante pela amazona Pentesiléia é prova disso). A percepção grega do amor considerava superior o amor entre os homens e inferior o amor entre um homem e uma mulher. Isso, no entanto, não impedia nenhum tipo de relação. E, quando a Ilíada foi contada e escrita, certamente não se achava que amar um homem depunha contra o heroísmo de Aquiles, ou sua força ou sua glória. Logo, a fúria de Aquiles é por ter perdido seu amor e não (apenas) seu melhor amigo. Tirar isso do grande herói grego é, ao meu ver, diminuí-lo, simplificá-lo, e, sem dúvida, é uma perda literária considerável.
Num outro ponto, eu preciso – admito que por minha leitura pessoal – destacar os meus outros heróis favoritos nesta história e eles são Heitor e Príamo. Mesmo que a narrativa grega lhes tenha uma admiração velada, que os coloca como antagonistas, é impossível não se emocionar e apaixonar por estes dois homens que lutam para defender algo muito mais importante que Helena. Heitor e Príamo lutam por Tróia, por seu lar, suas esposas, seus amores e filhos. Eles é que são (antes da queda de Tróia) os grandes depositários da civilização, em oposição às hordas gregas, mais bárbaras, mais toscas, desconhecidas das grandes cidades. A morte de Heitor é de uma tristeza amarga. Com ele, morrem as esperanças de Tróia e o leitor sabe disso. E, não tenho dúvidas em afirmar que, a cena em que Príamo vai se humilhar aos pés de Aquiles para pedir o corpo do filho não é para corações fracos.
Percebam a quantidade de amor e sentimentos fortes em cada uma destas cenas. Amor/desejo entre homens e mulheres, amor sublime (como os gregos o qualificavam) entre homens, amor dos pais aos filhos e também das mães (a deusa Tétis está no topo da galeria mães extremosas que conheço).

A guerra é tecida por estes amores e suas perdas. Por sentimentos fortes, complexos, cuja dor não pode ser medida. E é dessa forma, sem limites, que a grande riqueza de se ler ainda hoje a Ilíada se encontra.

Claro que você pode lê-la em prosa, em inúmeras adaptações, mas eu recomendo os versos. Pense que um dos valores mais importantes do texto literário é o seu ritmo. Pense que este ritmo é o que dá a sinestesia ao texto, é o que faz que ele entre sob a pele, emocione, seduza e, principalmente, amplie sua percepção do mundo. É um desafio? Claro que é. Mas diga: você não ama um desafio?

Para ler:
– HOMERO. Ilíada. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
Minha edição é antiguinha, mas tem destaque para o estudo do Carlos Alberto Nunes que aparece na introdução ao texto.
– SISSA, Giulia e DETIENNE, Marcel. Os Deuses Gregos. Cole. Vida Cotidiana. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
Obra de leitura pesada, mas uma das melhores coisas que já li sobre a natureza dos deuses. Um estudo à fundo dos textos clássicos inclusive debatendo o físico do mundo divino.