A História como inspiração– por Nikelen Witter
Originalmente publicado na Revista Fantástica (coluna Indo à Fonte).
Há um velho debate entre os historiadores sobre a História ser ciência ou ficção. Para alguns a proposição parece estranha, até porque, mesmo que os últimos cem anos de estudos históricos tenham batido contra esta afirmação, o grande público ainda acha que a história conta A VERDADE (“A” no sentido de uma só).
Isto é tão comum que já encontrei pessoas que ficam revoltadas quando se deparam com interpretações diferentes do conhecimento histórico. Já ouvi gente vociferar ter sido enganada ao saber de uma interpretação diversa daquela que lhe foi apresentada na escola. Tal concepção reside numa ideia simples, mas bem difícil de ser quebrada: a de que o passado histórico, após ocorrido, é imutável, logo, todas as narrativas sobre ele devem ser rigorosamente as mesmas. O que destoar é errado, manipulação ou um engano articulado pelos poderosos ou por ideologias alinhadas com eles ou contra eles.
Quer dizer, então, a História não fornece A VERDADE? Fornece sim, só que ela nunca será uma só, este é o caso. Digamos que você leitor e mais três amigos presenciem um fato, leiam um livro ou assistam a um filme. Vocês poderão contar essas experiências de formas diferentes e as quatro serão absolutamente verdadeiras. Por outro lado, não se deve esquecer que a História pode ser definida como a experiência humana no tempo. Logo, a medida que você e seus amigos se afastarem do momento em que viveram o acontecimento, leram o livro, ou viram o filme, vocês passarão a contá-lo e lembrá-lo de maneiras ainda mais distintas. E, contudo, as narrativas de vocês ainda serão a História VERDADEIRA, mesmo sendo esta feita a partir de múltiplas narrativas.
Ora, o mesmo caso ocorre com a grande História. E esta, assim como as narrativas geradas por você e seus amigos, vai se estruturar a partir das perguntas que são feitas. A diferença é que estas perguntas não se voltam (apenas) para pessoas, mas para o passado e os documentos (que não são apenas escritos) produzidos por ele. Cada época, cada nova geração irá gerar um número renovado e diferente de questões a serem feitas ao passado. Estas questões terão o papel de orientar a construção das narrativas que servirão como base para o estudo da História no nosso tempo. Isso invalida as narrativas anteriores? De forma alguma. Elas não passam a ser ERRADAS e tampouco se tornam uma tentativa de enganar quem as estudou. Aquelas narrativas passam a ser, agora, também, uma informação sobre a época que a produziu.
O debate sobre a cientificidade da História, porém, não está calcado nesta multiplicidade. Afinal, todo o conhecimento se transforma ao longo do tempo. A história não é diferente. Por outro lado, mesmo disciplinas indubitavelmente científicas como a física, já reconhecem que a mudança de observador pode alterar sim o resultado da experiência. A discussão está calcada é no processo através do qual as narrativas da História são construídas. Isso porque, mesmo com o uso de documentos, o historiador não vive as épocas sobre as quais escreve, logo, ele também necessita imaginá-las.
É aí que o historiador e o ficcionista se tocam. O ficcionista tem de construir ou reconstruir um mundo e isso vai exigir dele pesquisa, aprofundamento, complexidade e enorme atenção aos detalhes (sejam estes criados ou não por ele). A pergunta é: como o conhecimento histórico aparece junto à ficção fantástica e como ele pode ser usado pelos autores em seus mundos imaginários?
Vejamos algumas possibilidades:
1. A História pode aparecer como pano de fundo e cenário. Neste caso há uma exigência maior do ficcionista, pois é preciso que, ao construir sua história, ele seja coerente com o tempo que escolheu. Nada impede o autor de modificar todo cenário ao seu bel-prazer, mas ele terá de ser convincente nessas mudanças e a única forma de ser convincente é sabendo muito bem o que se está modificando e porquê. Numa palavra: pesquisa.
2. A História como inspiração distante, mesclada a elementos mitológicos. Uma boa quantidade de autores de ficção fantástica opta por este uso mais livre da História. Seja por inspiração tolkieana, seja por considerar esta uma forma mais fácil de utilizar de elementos “levemente” inspirados no conhecimento histórico-mitológico. Neste caso, o que se esquece algumas vezes é os autores reconhecidos, que se utilizaram desta fórmula, não sabiam História através de livros didáticos ou da Wikipédia. Tais autores, para mesclar elementos e construir mundos diversos, com inspiração histórica, fizeram muita leitura. (Se você é fã do Tolkien, nunca esqueça que ele era professor de Oxford e que pensava pesquisa de um jeito que devia diferir bastante do simples passear pelo Google). Dedicaram grande tempo e atenção a um enorme trabalho estético para adequar vestimentas, moradias, estruturas políticas e culturais, relações de gênero. Na elaboração de tudo isso foi preciso informação e escolha. Em uma palavra: pesquisa.
O fato é que o conhecimento da complexidade histórica ajuda a elaborar mundos mais sofisticados, onde nem todas as pessoas pensam igual, onde há correntes diferentes de interesses e de poderes. O conhecimento histórico reforça a capacidade dos autores de elaborarem estruturas políticas, econômicas, hierarquias e diferenças entre grupos socio-culturais dentro de sua narrativa original. É bom lembrar que conhecimento é a única coisa em que o exagero não pesa.
Por outro lado, há um enorme serviço que os autores de ficção fantástica podem fazer à disciplina da História, que é mostrar aos leitores o quanto de riqueza se pode extrair deste conhecimento, que nos permite ler o mundo com muito mais profundidade. Feliz o professor que precisar preparar uma aula extra para explicar aos seus alunos sobre a caça às bruxas, sobre as lendas e mitos de vampiros, lobisomens, sobre bandeiras e bandeirantes, sobre mitologias grega, nórdica, celta, brasileiras ou africanas.
Para concluir, tudo o que falei lá no início sobre as concepções de História foi para afirmar o seguinte. A História é uma das mais ricas fontes de inspiração para a literatura fantástica, mas ela não é unívoca. Sob o conhecimento histórico fervem debates, digladiam-se diferentes opiniões e teorias. É claro que para escrever sobre um dado período histórico um escritor não tem qualquer necessidade de dominar esses elementos, mas tampouco pode ignorá-los por completo. Por quê? Porque ao ignorar o que se passa entre os historiadores é possível até que o autor ache que seus livros didáticos da escola e o Wikipédia são fontes de pesquisa. Sinto, mas não são. São fontes de consulta. Aqueles lugares em que você vai para começar, nunca para terminar um trabalho de investigação.
Sendo assim, para colocar em uma única palavra a dica sobre como transformar toda essa inspiração num bom trabalho de ficção: PESQUISA.
Para saber mais, dê uma olhada nestes:
– GADDIS, John Lewis. Paisagens na História. Como os historiadores mapeiam o passado. Trad. Marisa Rocha Matta. Rio de janeiro: Campus, 2003. (Se seu interesse for entender um pouco, leia até o capítulo 5. Se quiser saber o quanto os historiadores podem ser loucos, leia inteiro.)
– BURKE, Peter (org). A Escrita da História. Novas perspectivas. Trad. Magda Lopes. São Paulo: UNESP, 1992. (Um apanhado de diferentes teorias e leituras da História que já se tornou um clássico. Inspirador em cada capítulo.)
– VOVELLE, Michel. Imagens e Imaginários na História. Fantasmas e certezas nas mentalidades desde a Idade Média até o século XX. Trad. Maria Julia Goldwasser. São Paulo: Ática, 1997. (Um dos maiores nomes da historiografia mundial analisando a produção de imagens e imaginários dos exorcismos medievais à Mulher Maravilha. Bom demais.)
Até a próxima!