Como dizem por aí, o Brasil não é para os fracos.
Manifestações contra expressões de arte são sempre perigosas, em todo os aspectos possíveis. Não me cabe aqui julgar o que é arte ou não. Na verdade, não cabe a ninguém. Se juntarmos uma dezena de filósofos, teremos uma dezena de respostas, o que já é um indicativo claro de que a resposta não é tão simples assim.
Muitas coisas estão inseridas nesta cruzada insana contra o insólito e, aqui, a própria palavra já nos dá algumas pistas. Segundo os dicionários, insólito é algo infrequente, raro, incomum; também é algo que se opõe aos costumes, que é contrário às regras.
No passado, as HQs eram insólitas. E o rock. E o cinema. E os biquínis. E um negro nas escolas. E a pílula anticoncepcional. E a TV. E a nudez. Epa, essa aí não. Aí, parece que estamos andando para trás.
Bom, a função primordial da arte é o insólito. De uma forma ou de outra, a ideia da arte é tentar nos levar a pensar sob um diferente ângulo, sobre outro prisma. Aqueles que combatem a arte estão, na verdade, apenas restabelecendo a sua inquietude com a mudança nos status quo. Por décadas, senão séculos, todas as sociedades – não só a brasileira – tem estabelecido seus próprios conceitos e preconceitos sobre o que é normalidade. Algumas vezes em nível nacional, outras vezes dentro das nossas pequenas micro sociedades (escolas, bairros, locais de trabalho). Qualquer coisa que ocorra longe desta normalidade é visto com desconfiança.
Desconfiança leva ao medo. O medo leva à ação. E daí temos estas barbáries em relação à censura que estamos vendo dia sim dia não. Travestidos de pregadores da moralidade, parte deste combatentes a favor do status quo utilizam o nosso frágil e esquizofrênico sistema judiciário para fazer valer a sua vontade, como se pudéssemos retornar aos tribunais eclesiásticos. E moralidade é algo muito tênue, meus caros. Moralidade tem a ver com valores e convenções, nem sempre escritas, estabelecidos coletivamente por cada cultura. No entanto, muitas vezes esta moralidade pode bater de frente com as liberdades individuais de cada um e, neste caso, ela não pode ser utilizada como desculpa para impor aos outros nossos próprios padrões. Existe uma diferença muito clara entre moralidade, direitos individuais e lei; se você não está infringindo a lei, ninguém tem nada a ver com isso.
Não é o que parte da justiça brasileira acha, que prefere julgar sobre seus próprios preconceitos e esquecer solenemente o que diz a constituição, aquela que eles juraram defender.
O que está acontecendo em nossos museus (o último baluarte da arte) diz muito mais sobre nós mesmo do que gostaríamos de acreditar. Principalmente pois, nestes casos, sempre é uma questão de escolha. É a mesma coisa que ir assistir a um filme do Transformers. Você sabe que é uma porcaria. Se quiser ir, o problema é seu. Se quiser levar o seus filhos, também é um problema seu. Se um pai ou mãe leva uma criança para assistir a um filme pornô, então este pai precisa ser chamado para conversar. Ele/Ela está expondo seu filho a cenas de sexo explícito ou velado, o que é proibido por lei. Mas não é a existência do filme que deve ser questionada. Assiste quem quer. A situação do museu diverge desta questão por se tratar de nudez, e não de erotismo ou pornografia. O naturismo, por exemplo (com a participação de crianças, levadas pelos pais) é permitida no Brasil e no mundo inteiro. Eu não vou assistir filmes pornôs e provavelmente não levaria meus filhos ao museu e, com certeza, não iria em uma praia naturista. Mas proibir algo só deve ocorrer quando há quebra de lei. Havia erotismo envolvido? Havia sexo envolvido? Se não, é nudez, apenas, e o Conselho Tutelar – que deve fazer valer o Estatuto da Criança e do Adolescente – não tem nada a ver com isso. O dever deles é estabelecer as respostas paras as duas perguntas acima. Em tempo: a nudez faz parte dos critérios para estabelecer faixa etária sob todas as artes, mas a legislação brasileira não abarca os museus, por um motivo óbvio: tá cheio de nudez nos museus. Aos borbotões. Artistas de todas as eras registraram corpos nus. E aí? Vamos cobrir todo mundo?
Deveria ser simples assim, mas muitas pessoas acreditam que não.
Existe uma diferença muito clara entre censura e faixa etária. Já temos faixa etária estabelecida na televisão, cinema, teatro, etc. No entanto, os pais sempre tem a prerrogativa de estabelecer suas próprias visões sobre o tema, de acordo com a sua consciência. Filmes, desenhos e séries que passam na televisão aberta ou fechada, ou sistemas de streaming, vem com indicação etária. Os pais, no conforto do lar, podem estabelecer seus próprios critérios com seus filhos. Não vejo ninguém gritando por aí quando crianças são expostas a violência excessiva e o sexo que passam nas telenovelas, mesmo as que passam em horário matutino. E, diferente do corpo nu do sujeito que causou tanto furor, nestes casos a erotização é a regra de ouro.
Nas últimas semanas, ainda tivemos a quebra de mais uma regra da constituição sobre o estado laico, com a permissão do supremo tribunal eclesiástico federal para a disseminação do proselitismo em escolas públicas. Fé é uma das características de todas as sociedades. Não há nenhum problema nisso. O estado, por outro lado, precisa tratar igual todos os seus cidadão. Esta é a base de um estado democrático. No entanto, ao estabelecer que um prefeito ou governador possa ditar qual será a fé oficial do município ou estado, abrimos um precedente perigoso. São todos iguais, mas alguns são mais iguais do que os outros? Numa escola para crianças, onde estas veem o professor como detentor do conhecimento, o que crianças que professam uma fé diferente da oficial vão achar ao se deparar com um professor que diz que o que elas acreditam está errado? Que tipo de trauma psicológico isso vai ocasionar nas nossas crianças?
E que tipo de proselitismo o estado vai bancar? O tipo que diz que a comunidade LGBT precisa ser queimada no inferno? Que quem professa outras religiões precisa ser apedrejado? Que você só pode ser feliz se depositar 10% ou 20% dos seus ganhos no bolso do pastor? Isso ocorre diariamente em nossa sociedade. Sim, não estamos falando em um país repleto de mulheres com burcas e orações em direção à Brasília. Isso é cada vez mais comum em terra brasilis. E, agora, o estado brasileiro vai financiar este tipo de coisa.
E a pataquada de que a maioria dos brasileiros professa alguma fé não importa, muito menos para quebrar uma das regras da constituição. Democracia não é, simplesmente, a vontade da maioria. Se assim o fosse, poderíamos retornar à escravidão em alguns lugares por aí. Democracia tem, como princípio básico, a ideia de que todos são iguais, com os mesmos direitos e deveres. Voltem para o dicionário, amiguinhos, e apaguem suas tochas.
É interessante também lembrar que, fora a Itália, todos os países ditos de primeiro mundo não têm o ensino religioso como parte do seu currículo escolar. Muitos oferecem a disciplina, mas apenas na forma opcional, onde os pais e os alunos decidem se vão frequentar ou não. O ensino da religião, obviamente, é deixado para cada família. É o Brasil mais uma vez na vanguarda do atraso.
E o que a literatura tem a ver com isso?
Muito. Primeiramente, pois ela é uma das primeiras coisas a serem censuradas. Todos os regimes obscurantistas, sem exceção (de direita, de esquerda, de centro, ou muito pelo contrário) tiveram, em um momento ou outro, uma aversão completa aos livros. Por quê? Porque a literatura é o tipo de arte que mais impacta na formação intelectual das pessoas. E porque, como arte, ela existe para fazer você pensar. Questionar. Agir. E tudo que um regime obscurantista deseja é que todos pensem igual. De preferência, falando e escrevendo em novilíngua.
Queimar livros é o último baluarte dos censores. Destruir o oposto. Impedir que as crianças sejam levadas a pensar de forma diferente. O que é um contrassenso em todos os sentidos possíveis e imagináveis. Hoje em dia, qualquer país civilizado faz o possível para que suas crianças pensem o mais divergente possível, pois o sucesso econômico e social depende, basicamente, da inovação. Que tipo de inovação vai existir se todos tiverem as mesmas experiências, bancadas por um estado controlador? (Utilizando um bordão comum por aí: se desejam isso, que vão para a Coreia de Norte).
A discussão sobre a fé e o perigo que existe na imposição de suas regras sobre a sociedade é uma constante em diversas histórias. Recentemente, a série The Handmaid’s Tale, que retrata uma sociedade norte-americana levada à guerra e à loucura após uma seita dominar boa parte do país, tem recebido enormes elogios da crítica e de público. Ela é baseada no livro de mesmo nome, da autora canadense Margaret Atwood.
No Brasil, muitos autores tem apresentado sua aversão à estas questões, de uma maneira ou de outra. Teocrasília é uma HQ de Denis Mello (ilustrador de Belladona) que mostra o Brasil vivendo sob uma regime teocrático instalado pela bancada evangélica. Seu fundamentalismo foi baseado com referências ao Estado Islâmico, ao nazismo e a ditadura. Por quê? Por que Mello não gosta dos evangélicos? Não. Porque, como já disse antes, todos os fundamentalistas se parecem. Eles podem professar deuses diferentes ou terem ideais econômicas diferentes, mas sempre que alguém tenta impor sua verdade sobre os outros, a prática dos homo não-tão-sapiens é mais ou menos a mesma. A crítica do autor não é sobre os evangélicos em si, mas numa possível sociedade homogeneizada à força (alô, censores, como estão vocês?).
Caminhando no mesmo conceito, o último romance de Eric Novello, Ninguém Nasce Herói (Cia das Letras), apresenta um Brasil governado pela intolerância, após um golpe de estado ter levado ao poder o Escolhido, um sujeito que, no braços de parte das massas, comanda o país com leis rígidas e tolerância zero. O diverso é perseguido sob todos os aspectos. Se você tiver nascido com a cor, preferência sexual, pensamento ou ideal errado, então você pode e deve ser preso. Neste Brasil, combater as minorias é a palavra de ordem e o racismo institucional é espalhado por uma guarda especial. Livros e ideias são censuradas. Preconceitos que só existiam de forma velada, são gritados com orgulho (Obviamente, isso não é mera coincidência e o reconhecimento deste fato torna o livro assustadoramente real). O Escolhido é ligado ao cristianismo, mas o livro não é uma ode contra a Igreja Católica, mas contra os seus seguidores sectários. Ao apresentar personagens jovens lutando contra uma estrutura que não entendem, vemos que ninguém precisa vestir capa azul e vermelha para bancar o herói. A mudança, como sempre, ocorre com a soma das atitudes de cada um.
Já em Homens Elegantes, de Samir Machado (Ed. Rocco), temos um cenário completamente diferente. Trata-se de um livro histórico, que se passa no longínquo ano de 1760. Érico Borges é um fiscal de alfândega brasileiro que vai para Londres investigar uma rede de contrabando de um dos artigos mais controlados do comércio brasileiro na época: livros. Sim, mais uma vez, a literatura como uma inimiga do poder constituído, que precisa ser controlada e vigiada. Mas Érico, apesar de inteligente e bem educado, vem de uma realidade quase medieval e se confronta com um dos berços do Iluminismo. O vilão é o Conde Bolsonaro (he he he), um sujeito fanático e intolerante, que deseja destruir qualquer homem, mulher, criança, objeto ou livro que ele, com seus próprios conceitos, julgue ser sodomita. Ou seja, o Conde e seus asseclas desejam tomar para si a ideia de conceituar a arte (Viram os primeiros parágrafos lá em cima?) e tudo que for considerado inadequado, deve ser destruído. O mais assustador da obra é que a casta política da época (Boi, Bala e Bíblia) é absurdamente atual.
Por fim, no Comboio de Espectros (futuro lançamento da editora Avec, livros de contos do autor de horror Duda Falcão), o primeiro conto – que dá nome ao livro – atravessa todas estas questões. Até onde a fé, a honestidade e o pecado podem ser medidos para um indivíduo ou, mesmo, uma sociedade? A fé católica pode sobrepor o bom senso e levar os demais à uma situação de perigo? O que eu acho e acredito é tão forte para que eu tenha que sacrificar os outros em nome da minha fé? Novamente, aqui, o autor não está pregando a destruição da Igreja Católica, mas, sim, apresentando uma história que faz o leitor pensar sobre até onde vai a sua liberdade em relação ao outro.
Como artistas, Denis, Eric, Samir e Duda, buscam fazer o leitor pensar sobre situações extremas, quando a fé dá lugar a razão, seja em mundos imaginários ou bem próximos de nós. Quando o respeito ao outro é tolhido pela ideia de que o eu e o que eu penso é mais importante. Pois este tipo de pensamento leva ao eu ser melhor/maior/mais digno do que o outro. E se o outro é “indigno” ou “inferior”, que punição ele merece? As mesmas que o Estado Islâmico reserva às mulheres, cristãos ou homossexuais? É neste tipo de sociedade que queremos nos espalhar? Bem-vindo à sociedade de castas!
Como uma última palavra, pois sempre é bom lembrar, a defesa do estado laico e do não estabelecimento de censura não é uma afronta às religiões ou à fundamentos morais de qualquer cidadão. Muito pelo contrário! É, simplesmente, a defesa do pluralismo e da convivência. Você e sua família decidem, dentro dos limites da lei, o que é importante e bom para os seus. Você tem o direito de ser heterossexual, homossexual, cristão, ateu, judeu, evangélico, umbandista, gremista, colorado, agnóstico ou orar para a igreja do espaguete voador. Defender estes direitos alienáveis é defender a LIBERDADE. E é bom para quem usa esta palavra em seus bordões, que primeiro procure nos dicionários o seu significado. Pois parece que vocês não fizeram o dever de casa.