Travessias e Submundos – por Nikelen Witter
Originalmente publicado na Revista Fantástica (coluna Indo à Fonte).
Um dos episódios mais comuns quando se trata de literatura fantástica são as travessias. Engana-se, porém, quem acredita que este é um expediente moderno. As travessias são, geralmente, uma parte da jornada dos heróis, e envolvem muito mais do que ir de um lugar ao outro. Sua marca é a presença de um portal, o qual pode ter esta denominação ou ser concebida como sonho, loucura ou, até mesmo, morte. De fato, alguns simbolistas creem que toda a travessia tem o significado de morte ritual.
Para justificar esta ideia, muitos estudiosos recorrem à mitologia e às metáforas, nela encerradas, de morte e renascimento. Quase todos os heróis mitológicos tiveram suas travessias, suas mortes rituais, da qual retornaram diferentes porque estavam renascidos. Esse renascimento retira os heróis de seu mundo ordinário, de sua existência ordinária, e, quando os devolve, o faz de forma que eles deixem de ser criaturas comuns. O herói renascido é o agente modificador da história, ele irá transformar o mundo a sua volta. Em outras palavras, só alcança seu papel definitivo, depois de morrer e renascer, ele assume outra qualidade de existência.
Uma das formas mais usadas para marcar a travessia é a descida aos ínferos ou ao submundo. Entradas em cavernas e labirintos são igualmente utilizados nessas mortes metafóricas, assim como travessias que envolvam o mar, afogamentos, ou água em geral; florestas densas, desertos e outros territórios inóspitos podem cumprir a mesma função. Hércules, Orfeu, Perseu e Teseu são alguns dos heróis que cumpriram suas mortes rituais entrando em locais que ou pertenciam aos mortos ou dos quais não se imaginava que pudessem retornar vivos. Esse retorno é o que permite ao herói finalmente cumprir o seu destino e aparece inclusive em sagas modernas. Harry Potter, por exemplo, desce ao inferno, isto é, aos ínferos pelo menos uma vez por ano, ou melhor dizendo, nos sete livros da saga. Se é um abuso narrativo? Talvez, mas os fãs não concordariam com essa ideia. Pode um herói precisar de tantas transformações para crescer? Talvez sim, afinal, nós mesmos buscamos nos reciclar a cada fim de ano e engolimos uvas, pulamos ondas e tomamos banhos de ervas e sal grosso para marcar o fim de tudo o que se tornou ordinário em nossa vida, passando a buscar uma outra existência.
Não acho que se trate de um caso de a arte imita a vida ou vice versa. O fato que a qualquer existência se faz de travessias, mortes e renascimentos. Nestes há quem escolha recriar o mundo todos os dias da mesma maneira e há os que decidem fazer diferente. Na vida, somos, em geral, os primeiros; já nos livros, elegemos os segundos como heróis e, algumas vezes, nos espelhamos neles.
Até a próxima!
Conheça alguns personagens da AVEC que já fizeram suas travessias:
- Alena
- Anrath (em Os contos do cão negro)
- Remy, Firmino e Maria Floresta (Guanabara Real e a alcova da morte)