A entrevista de Vagner Abreu publicada originalmente no site Vida de Escritor
Entrevista com escritor de “Le Chevalier e a Exposição Universal”, André Zanki Cordenonsi, publicado pela Avec editora em setembro de 2015.
Olá escritores.
Estive um tempo de recesso por motivos de saúde, mas não vamos falar sobre isso.
O assunto que quero trazer à baila é vapor, metal, era vitoriana… e autômatos!
Se você não acha estranho todos esses elementos em uma frase só, parabéns você já está familiarizado com um dos subgêneros da ficção científica que mais cresce no Brasil: o steampunk.
E um dos autores mais reconhecidos por escrever esse tipo de literatura é o André Zanki Cordenonsi (ou A.Z.) como chamaremos ao longo do post. Ele escreveu “Le Chevalier e a Exposição Universal” (que você pode ler sobre aqui)e concedeu essa entrevista para mim pois eu ameacei roubar o drozde dele, ah, quer dizer, pois colaboro com a Avec Editora.
Preparado para entender como criar um mundo de steampunk do zero? E fazê-lo rico e cheio de gadgets? Então você precisa ler a entrevista que segue…
Como nasce uma obra steampunk?
Vagner Abreu: Gostaria de começar essa entrevista pedindo para que você se apresente. Fale um pouquinho de sua carreira literária e não literária até o lançamento de “LeChevalier e a Exposição Universal” pela Avec Editora.
Andre Zanki Cordenonsi: Olá, pessoal, meu nome é Andre Zanki Cordenonsi, sou professor universitário na área de computação e informática na educação desde 1996. Comecei a escrever há uns cinco anos, mais ou menos, quando tirei os textos da gaveta e os liberei para o mundo.
Participei de várias seleções de antologias, nos mais diversos temas: ficção científica, horror, fantasia, steampunk. A intenção era testar meus limites, minhas ideias e a minha escrita, propriamente dita. Foi um processo longo e prazeroso. Cada aceite, cada crítica e cada sugestão se tornou parte fundamental do escritor que sou hoje. Acredito que esta trajetória, baseada principalmente na construção de contos que passavam por um comitê avaliador, é fundamental para um autor iniciante.
VA: Como você descobriu a vontade de escrever e principalmente esse desejo por escrever histórias de ficção científica em universos “retrofuturistas”?
AZ: A vontade de escrever surgiu naturalmente. Minha curiosidade sobre os livros veio de berço. Lia absurdamente, o que aparecesse pela frente. Histórias de detetive, aventuras, romances, ficção científica, horror, não importava: se estava escrito, eu lia. Foi quase um passo natural, para quem passava tanto tempo lendo, sem parar.
Em relação a ficção científica retrofuturista, há dois pontos a considerar: o primeiro, é que este livro é quase uma homenagem a minha própria infância, onde os heróis literários como Alan Quatermain, Greystoke, Nemo e outros competiam em pé de igualdade com os verdadeiros aventureiros do século XIX, comoHoward Carter, David Livingstone, Freya Stark, Amelia Edwards, Roald Amundsen e Amelia Earhart.
Esta mistura de ficção e realidade foi parte importante da minha formação. Desta forma, entramos no segundo ponto: quando criei o personagem Le Chevalier e estabeleci ele na França de 1867, o cenário steampunk surgiu quase como uma obrigação. A ambientação respondia a todos os questionamentos que eu queria para o projeto e eu acabei mergulhando a fundo na ideia de um mundo steampunk.
VA: Quais são os aspectos da literatura Steampunk que mais te fascinam e quais, na sua opinião, são os elementos fundamentais para uma boa narrativa nesse cenário?
AZ: Acredito que a reinvenção do mundo seja a questão mais complexa e divertida de um cenário steampunk.
A ideia não é somente alterar o mundo vitoriano ou eduardiano –os mais comuns –, mas corrompê-lo de forma fidedigna às suas próprias escolhas.
O mundo vitoriano real tinha uma série de problemas: crianças e mulheres eram considerados cidadãos de segunda classe, havia uma absurda desigualdade social, o imperialismo dividia o mundo em conquistadores e conquistados.
Apesar de termos muitos problemas na nossa sociedade atual, os problemas na época eram muito piores. Quando você insere uma tecnologia diversa – a tecnologia steampunk – neste momento histórico, você precisa ser fiel a este movimento.
Quais são as consequências diretas e indiretas de um motor a vapor mais desenvolvido, de um autômato, de zepelins ou qualquer outra tecnologia, naquela sociedade? Esta é, para mim, a grande questão que deve nortear a ambientação social de uma história steampunk.
VA: Como se dá o seu processo criativo. Você tem uma rotina conturbada de professor universitário, pesquisador e junte a isso família, enfim, o tempo é escasso até você poder sentar e escrever, como conciliar tudo isso e ainda ter essa maestria que você demonstrou escrevendo Le Chevalier?
AZ: Há dois momentos na vida de um escritor: o da inspiração e a escrita.
A inspiração pode ocorrer a qualquer momento, em qualquer lugar. Um local, uma conversa, um filme, um livro, uma notícia. Sempre que algo me lembra ou me fazer pensar, eu anoto no celular. Isso pode gerar uma história mais tarde (normalmente, não leva a lugar algum, mas é assim mesmo). Para pessoas diferentes, as inspirações surgem de maneiras diferentes, não é um processo único ou bem definido.
Mas esta é a parte fácil. Aí vem a escrita.
E, neste caso, eu só conheço uma forma de funcionar: projeto + trabalho duro.
Como meu tempo é escasso, eu projeto muito bem o que vou escrever, principalmente em romances. Até mesmo contos eu gosto de ter uma ideia muito bem definida antes de começar a escrever.
O projeto elimina – em boa parte – o desperdício de tempo, algo que não tenho o luxo de gastar. É claro que pode haver mudanças, até mesmo significativas, no momento em que coloco as palavras no computador, mas é muito mais fácil adaptar e modificar algo que já tem sentido do que tentar dar sentido há algo que você não sabe muito bem o que é.
Para quem escreve aventuras e histórias de mistério, que é o meu caso, não há como escapar de um bom projeto, pois a possibilidade de criar soluções pobres é muito grande. E o trabalho duro vem de transformar isso em um bom texto, o que envolve pesquisa. Normalmente, eu ocupo os tempos perdidos para iniciar uma pesquisa – às vezes sobre coisas que só vou usar anos depois ou mesmo nem vou usar: intervalo entre as aulas, fila de supermercado, horário do cafezinho. Sim, você ignora uma boa parte da sua vida se quiser se tornar escritor.
Steampunk: Cultura e Movimento Social
VA: Entre os escritores de Steampunk contemporâneos e os autores da clássica literatura vitoriana, liste o seu TOP 10 escritores de todos os tempos. Veja bem, você só poderá escolher entre autores desses períodos e somente 10 deles.
AZ: Julio Verne, Conan Doyle, H. G. Wells, Mary Shelley, Scott Westerfeld (pela trilogia Leviatã), Tim Powers, Cherie Priest, H. Rider Haggard, Charles Dickens e Edgar Allan Poe.
VA: Quais obras podem gerar bons escritores de Steampunk? Por quê?
AZ: Acho que o ponto de partida é a ficção científica do Século XIX, pois ela foi a base do que conhecemos como steampunk atualmente.
Julio Verne e H.G. Wells são obrigatórios, assim como Mary Shelley. Tim Powers é importante e as duas obras do Gibson, “Neuromancer” e a “Máquina Diferencial”, também.
É necessário se aprofundar nos clássicos para saber de onde o gênero surgiu. Isso não quer dizer que o autor deva se prender a eles – é perigoso e bastante contra produtivo, pois caímos na perigosa armadilha de virar tudo um pastiche do que já foi feito antes.
Mas um verdadeiro autor precisa saber de onde saiu e, principalmente, para onde vai. A primeira parte depende da sua própria pesquisa, das suas influências e do gênero que ele pretende abarcar. A segunda parte é uma senda trilhada sozinho, única para cada autor.
VA: O Steampunk deixou de ser subgênero literário. Hoje em dia, existem pessoas que afirmam pertencer a esse movimento (como uma tribo), se vestem no dia a dia com roupas vitorianas, e adornadas com relógios, óculos de maquinista, bugigangas tecnológicas. Como você vê esses movimentos e como é escrever para um subgênero tão pequeno em relação a gêneros tão mais “na moda”?
AZ: O steampunk como estilo de vida se tornou bastante difundido nos dias de hoje. Há convenções, lojas, congressos, piqueniques, viagens, tudo que remonta a este passado que nunca existiu. São movimentos interessantes e que estão espalhados por todo mundo, influenciando e sendo influenciado por outros movimentos (aficionados por histórias de mistério do início do século XX, fãs de Sherlock Holmes, fãs de Agatha Christie, entusiastas dos aventureiros do século XIX).
No entanto, a literatura é um pouco mais permissiva. Os romances e contos steampunk tem um pé na ficção-científica, mas, normalmente, tem um pé em algum outro lugar.
Existem obras de mistério, horror, fantasia, suspense, detetive, etc. Os autores utilizam o steampunk para criar o mundo e a ambientação, mas o steampunk, em si, não fornece bases para a sua história. Isso depende de cada autor. No meu caso, a história é um thriller de aventura. Logo, quem gosta de histórias de espionagem, de aventura, vai poder ler o livro, mesmo nunca tendo lido uma obra steampunk na vida.
Criando o Universo de Le Chevalier
VA: Por que Paris foi escolhida para ser palco da aventura de Le Chavalier. Quem lê o livro entende essa pergunta logo quando você descreve seu universo. Mas, como foi esse processo de escolher a França como cenário para o romance?
AZ: A escolha de Paris e da França nasceu após uma série de pequenos eventos e decisões. Primeiramente, o livro nasce de uma peça que assisti na Broadway, “O Fantasma da Ópera”.
Apesar de já conhecer a obra, a performance de Erik e seus múltiplos estratagemas provocaram uma tempestade cerebral: aquele sujeito não era simplesmente um aficionado misterioso, ele era um espião!
Havia uma agenda oculta por trás de tudo aquilo, algo que eu ainda não sabia muito bem o quê. A partir daí, o universo ficcional foi se desenvolvendo. Resolvi estudar com profundidade a história da França – pesquisa – durante o período industrial. Destes estudos, surgiu a ideia do primeiro livro – o Fantasma ainda está engavetado, mas ele retornará!
Por outro lado, Paris, e a França como um todo, podia servir como contraponto ao que estava sendo desenvolvido no gênero steampunk. A maioria das histórias centrava-se ou em Londres ou nos Estados Unidos da América. Ao trazer o centro do mundo para Paris, eu quebrava esta espécie de paradigma.
Após a pesquisa histórica, veio a construção do mundo propriamente dito. Isso exigiu uma extensa pesquisa sobre a Paris da época. Mapas, fotos, desenhos, tudo que podia remeter a Paris do final do século XIX foi utilizado como fonte de pesquisa. É claro que isso só foi o início do trabalho. Um mundo steampunk é uma exacerbação, uma modificação, um estranhamento da realidade. Logo, após descobrir como a Paris era, eu precisava recriá-la como a Paris que poderia ter sido.
VA: Cara, eu adorei a ideia dos drozde, queria ter um deles para mim (um macaco, não um gato, não uma coruja… Ah, todos esses), como eles entraram na história? E na sua visão, o que um autor deve ter em mente ao criar os equipamentos, aparatos, autômatos e demais itens em universos Steampunk?
AZ: Respondendo primeiramente a segunda questão, os artefatos tecnológicos de um mundo steampunk são parte recorrente de todas as obras que atravessam o gênero.
A principal questão aqui é a honestidade com o leitor e com o mundo que você está criando. As regras que você estabelece para o mundo são importantes, pois o leitor vai se acostumar a elas.
A gente sabe que, muitas vezes, estas regras são quebradas em um momento decisivo para criar algum tipo de impacto. Isso é possível, mas, se você tornar este estratagema repetitivo, o leitor vai se sentir enganado. A tecnologia, aqui, é importante. O mundo steampunk tem muita tecnologia. Vale a pena o autor gastar um pouco de tempo entendendo como esta tecnologia funciona e como você pode modificá-la/recriá-la para tomar suas próprias decisões.
Em relação aos drozdes, eles surgiram por causa de um estranhamento que eu tinha em relação aos autômatos que abundam em histórias steampunk.
Apesar de ser um elemento corriqueiro, eles acabam tomando, muitas vezes, uma importância muito grande. A própria presença de um autômato humano trás uma série de questões que pode atrapalhar o andamento da obra, a não ser que esta seja a questão da história. Quando que criei os drozdes, a minha intenção era inserir um elemento autômato que pudesse servir para dar ritmo à narrativa, criar alguns contrapontos mais suaves à tensão e ser um digno representante das histórias steampunk.
E, com isso em mente, me lembrei de Jaquet-Droz e seus patos e marrecos mecânicos, cuja história eu contava nas aulas. Um autômato clockpunk, com personalidade própria, servia exatamente aos meus propósitos.
E, sim, eu também queria um. Acho que o corvo mal humorado do Le Chevalier.
VA: Então, vamos falar de Le Chevalier. A personalidade dele lembrou muito um 007 bem ousado (tipo Sean Connery), mas um pouco mais discreto. O Agente britânico pode ter sido tão influente assim na criação do seu protagonista? Aposto que Sherlock Holmes e Hercule Poirot também o foram. Como você criou Le Chevalier? O que há nele que tanto cativa seu criador?
AZ: A questão mais importante em Le Chevalier é que, ao mesmo tempo em que ele é um agente francês, ele tem um código de honra bastante peculiar.
Ele sacrificou o próprio nome e a sua vida para servir oBureau, mas sua intenção era muito mais ajudar do que defender a França com unhas e dentes. Ele circula pelo lado cinza da vida, onde nem tudo é particularmente ruim ou bom, e precisa tomar decisões importantes. Ele é uma mistura de Holmes com Bond. Ele utiliza a cabeça, antes de tudo – afinal, ele é um investigador do Bureau e espião –, mas não se furta a uma boa briga.
O fascínio em Le Chevalier é entender o seu passado e suas decisões.
Por que ele aceitou o manto? Por que alguém deixaria a própria vida para trás para servir o país? Ele se aliou ao Persa, um tunisiano, uma pessoa vista como cidadão de segunda classe naquela sociedade. Ele deixou Juliette livre, uma garota nas ruas, mesmo que a lei o obrigasse a conduzi-la até o Orfanato novamente. Ele é um homem que não teme tomar as decisões justas, mesmo que precise quebrar as regras, de vez em quando.
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Continua no Próximo Episódio…
Baaaah. Pois é galera. O papo até aqui está muito bom e ele não para, sabia?
A entrevista com A.Z. Cordenonsicontinua na próxima semana. Em que ele dará mais detalhes sobre o universo deLe Chevalier.
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Até mais.