A Fonte Fundamental – por Nikelen Witter
Originalmente publicado na Revista Fantástica (coluna Indo à Fonte).
Indicar livros como fontes de inspiração para o trabalho dos escritores pressupõe que os escritores são, antes de tudo, leitores. Sendo assim, a fonte mais fundamental de todas não é outra que não a própria leitura. Ela é o tecido primeiro do qual se costura a essência do escritor. No entanto, não é rara a reclamação de editores e professores de escrita criativa a cerca de pessoas que querem ser escritores e que, por mais incrível que pareça, não são ou não se interessam em ser leitores. Parafraseando Stephen Koch (Oficina de Escritores): como é que alguém pode querer ser jogador de futebol se sequer gosta de assistir ao jogo? A realidade é bizarra neste sentido, pois é grande o número de aspirantes a escritores que, deslumbrados com as próprias ideias, esquecem que todo o ofício tem uma base formativa. A do escritor é a leitura, e não sou eu quem diz isso.
“Se eu ganhasse um níquel […] a cada pessoa que me diz que queria ser escritor, mas ‘não tem tempo para ler’, poderia oferecer-me um belo filé no jantar. Posso ser bem direto sobre o assunto? Quem não tem tempo para ler, não tem tempo (nem ferramentas) para escrever. É simples assim. A leitura é o centro criativo da vida do escritor.” Stephen King
É claro que não há uma matemática a determinar que todo o grande leitor será um grande escritor. Porém, pode-se ter certeza, só se fazem grandes escritores a partir de grandes leitores.
“Leio ficção […] para me libertar de minha própria perspectiva de vida estreita e sufocante e para deixar-me fisgar pela afinidade imaginativa com um ponto de vista plenamente desenvolvido que não seja meu. Escrevo pelo mesmo motivo.” Philip Roth
Quem lê regularmente e por prazer, com certeza, não discorda de mim nem dos escritores citados acima. Contudo, não imagine você que ler seja algo simples, embora essa seja a sua aparência para a maioria dos leitores. Acredite, se ler fosse uma atividade simples, não seria tão difícil ensinar a leitura verdadeira (e não apenas o conhecimento e uso simples dos signos de alfabéticos), nem haveria tanta resistência por parte dos não leitores. De fato, é preciso pensar quando uma pessoa diz que não gosta de ler, se ela realmente não gosta, ou se o seu processo de aprendizagem da leitura não acabou falhando em algum ponto do processo.
Não pense, porém, que apenas quem lê livros é que pode ser chamado de leitor. Numa sociedade letrada e marcada pela escrita como a nossa, todos são leitores em maior ou menor grau. E o uso social disso abarca quase todas as nossas relações. O filme abaixo é a primeira parte de um documentário sobre este uso social, o letramento, feito por professores, vale à pena conferi-lo.
Portanto, a leitura ocupa a vida mesmo de quem não é um leitor costumeiro de ficção ou qualquer outro tipo de texto longo. Seu uso social é muito mais amplo e sua importância em nossa sociedade é imensa, quase impossível de ser completamente mapeada. Por outro lado, acessar um texto literário pela leitura não é mesmo que ler mensagens curtas e exige uma habilidade maior. De fato, mesmo a leitura das notícias (inclusive das que são assistidas e não lidas) exige grandemente de nossa capacidade interpretativa. Lembra daquela parte dos estudos de Língua Portuguesa na escola chamada Leitura e Interpretação? Pois é. Ela é fundamental na nossa compreensão do mundo. Ler não é o suficiente. É preciso interpretar, apropriar-se do produto do que é lido. E este não é um processo que possa ser acessado por qualquer tipo de decoreba. É preciso, verdadeiramente, aprendê-lo.
“[…] a leitura envolve muito mais que trabalho e navegação na rede. A leitura é para a mente o que a música é para o espírito. A leitura desafia, capacita, encanta e enriquece. Pequenas marcas pretas sobre a folha branca ou caracteres na tela do computador pessoal são capazes de nos levar ao pranto, abrir nossa mente para novas ideias e entendimentos, inspirar, organizar nossa existência e nos conectar ao universo.” Steven Roger Fischer
Ora, todo esse movimento interno não ocorre sem o investimento e o esforço do leitor. A boa notícia é que ler – depois que se aprende a fazê-lo verdadeiramente – se torna um hábito viciante e todas estas ligações internas descritas por Fischer se fazem automaticamente. Entretanto, apesar da relação óbvia entre o leitor e o escritor, a leitura não é, em termos neurológicos, a mesma coisa que a escrita. Cada uma delas ativa partes diferentes do cérebro e a leitura pode ser ainda mais exigente nesta ativação que a escrita. Além disso, a leitura – bem mais que a escrita – participou ativamente na construção das nossas atitudes sócio-culturais e na nossa capacidade de compreender o mundo que nos cerca. Novamente citando Fischer: “A escrita é pública; a leitura, privada. A escrita é limitada; a leitura, infinita. A escrita congela o momento. A leitura é para sempre.”
Historicamente, a primeira leitura nos chegou como no belo filme O Leitor, através da voz daquele que lê. Isso porque, na maior parte de nossa História, a imensa maioria das pessoas foi analfabeta. Foram os leitores em voz alta que, ao levarem os textos escritos ao público (como escribas, arautos, sacerdotes e, até mesmo, Aedos), que moldaram nossa percepção do tempo, do espaço e, inclusive, foram dando forma a nossa imaginação. No longo processo de formação da leitura, eu creio que possamos destacar pelo menos três deles como sendo extraordinariamente importantes.
1. A leitura/escrita como um componente da memória. Mesmo que, por muito tempo, o ensino tenha se baseado exclusivamente na memorização do texto escrito, o fato é que é a presença do texto que permite ao conhecimento humano ampliar-se. Afinal, não é mais preciso guardar todo o saber “dentro” da cabeça. Podem-se relegar detalhes à escrita e retomá-los a partir da leitura.
2. A leitura silenciosa. Os historiadores apontam que esta teria nascido, muito provavelmente, durante o medievo, junto às bibliotecas monásticas. Sua principal consequência foi a capacidade de elaborar conclusões próprias sobre o que era lido, e processá-las no interior da mente antes de exteriorizá-las. A leitura silenciosa abre às portas do raciocínio para a contestação do que antes era visto como imutável. Obviamente, esta leitura íntima não irá acabar com a leitura falada, a qual se estenderá até o século XX. De fato, os textos, em sua maioria, continuam a ser escritos tendo em vista muito mais os ouvintes do que os leitores.
3. O processo democratizador da leitura ocorrido a partir da Época Moderna. Contribuem para isso: a invenção da imprensa, a popularização da encadernação de texto em forma de biblos (o livro), o protestantismo religioso, o surgimento da imprensa e a sucessiva queda de barreiras à formação dos leitores. Em especial, não se pode deixar de comentar, a quebra dos dogmas que impediam o acesso das mulheres à leitura e o longo caminho que elas percorrem para conquistar esse espaço.
Como você pôde perceber, a riqueza do processo de leitura não se limita ao ato de abrir um livro e lê-lo. A leitura tem história e é uma conquista da qual não apenas não devemos abrir mão, como precisamos nos assenhorear com mais vigor em termos sociais. Não importa se você tem ou não ambições de escrever, ler torna o mundo mais rico, amplo e imaginativo. E isso é um fato.
Mas, será que todo o leitor é igual? Será que se aprende a ler com as mesmas fórmulas para todos? Será que é possível a gente se tornar um leitor melhor? Bom, mantenha-se ligado no blog que logo voltaremos a conversar sobre isso.
Para saber um pouco mais, indico:
– KOCH, Stephen. Oficina de Escritores. Um manual para a arte da Ficção. Trad. Marcelo Dias Almada. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008.
– FISCHER, Steven Roger. História da Leitura. Trad. Claudia Freire. São Paulo: Editora UNESP, 2006.
– BELO, André. História & Livro e Leitura. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
Até a próxima!